terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Feliz Natal


O que as pessoas querem dizer quando desejam "Feliz Natal"?

Os cristãos poderiam ter uma resposta para a pergunta. Talvez no passado, não mais hoje.

Mas, independentemente da fé ou da falta de fé em uma realidade transcendental, quem sabe seja possível dar um sentido para o Natal. Tempo de construir esperanças, acreditar em transformações, desejar um mundo melhor. Tempo de cura.

Feliz Natal



Existirá
Em todo porto tremulará
A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará
Uma ponta de esperança

E se virá
Será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá
Toda certeza vã
Não sobrará
Pedra sobre pedra

Enquanto isso
Não nos custa insistir
Na questão do desejo
Não deixar se extinguir
Desafiando de vez a noção
Na qual se crê
Que o inferno é aqui

Existirá
E toda raça então experimentará
Para todo mal
A cura

Existirá
Em todo porto se estiará
A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará
Uma ponta de esperança

E se virá
Será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá
Toda certeza vã
Não sobrará
Pedra sobre pedra

Enquanto isso
Não nos custa insistir
Na questão do desejo
Não deixar se extinguir
Desafiando de vez a noção
Na qual se crê
Que o inferno é aqui

Existirá
E toda raça então experimentará
Para todo mal
A cura

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O amor, segundo Neruda



No blog do meu amigo Jason (O esvaziar das nuvens), encontrei um texto interessante de Nietzsche: "Ao iniciar um casamento, o homem deve se colocar a seguinte pergunta: você acredita que gostará de conversar com esta mulher até na velhice? Tudo o mais no casamento é transitório, mas a maior parte do tempo é dedicada à conversa".

Para conseguir o que propõe Nietzche, é preciso saber amar sem desejar apenas o que nos preenche a falta, como pensava Platão. Acho que a maioria dos amantes tem dificuldade para lidar com isto: querer aquilo que está ao nosso lado, aparentemente antigo, desinteressante, coisa que parece não preencher vazio nenhum. Desejar a mesma mulher ou mesmo homem por toda a vida. Quando bate esta sensação, eles logo dizem, como motivo para o adeus: "o amor acabou".

Que tipo de amor? Com certeza, não é o amor de que fala Pablo Neruda:

Desta vez me deixa ser feliz
Nada aconteceu a ninguém,
não estou em parte alguma,
simplesmente sucede
que sou feliz
pelos quatro costados
do coração, andando,
dormindo ou escrevendo.
O que posso fazer, sou feliz.
Tu a meu lado na areia,
é areia,
tu cantas e és canto,
o mundo
é hoje minha alma:
canto e areia
o mundo
é hoje a tua boca;
me deixa
em tua boca e na areia
ser feliz,
ser feliz porque sim, porque
respiro
e porque tu respiras,
ser feliz porque toco
teu joelho
e é como se tocasse
a pele azul do céu
e sua frescura.
Hoje me deixa só a mim
ser feliz,
como todos ou sem todos,
ser feliz
com a relva
e a areia,
ser feliz
com o ar e a terra,
ser feliz
contigo com a tua boca,
ser feliz.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Qual é a nossa motivação?

Fui renovar minha carteira de habilitação. A mulher que estava sendo atendida antes de mim ficou indignada quando soube que, por causa do movimento de fim de ano, o motorista pode ter que esperar até 15 dias para receber o documento em casa. Ela disse em alto e bom som, para que todos na sala pudessem ouvir: "então meu marido vai ter que ligar para o Diretor do Detran, que é amigo dele". Ela não só pensava em usar uma suposta influência, mas necessitava demonstrar que tinha a tal influência.

Poder, dinheiro e prestígio - penso que esses são os três principais motores do ser humano. Quando buscamos no fundo da alma a nossa motivação (aquilo por que lutamos) corremos o risco de encontrar uma das três razões.

A minha lista deriva do que diz Spinoza. Ao refletir sobre as coisas que poderiam produzir a suprema felicidade (segundo pensam os homens), ele destacou as riquezas, as honras e a concupiscência. O problema, diz o filósofo, é que, se formos frustrados em algum momento na esperança de viver felizes com base nessas motivações, podemos ser tomados por uma suprema tristeza.

Poder, riqueza, honra, prestígio...

Quando mais pensamos ser felizes nos movendo sobre essas bases, mais desejamos ser reconhecidos por elas. Pensamos ficar mais belos assim.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Platão e Salomão


A gente ama pra ser eterno. A procura pela beleza definitiva gera o desejo de ser imortal.O herói não se arrisca apenas para salvar a pessoa amada, mas para se imortalizar em sua coragem.É mais ou menos o que diz Platão:

"Atenta bem na ambição que domina todos os homens e ficarás surpreendido com o absurdo dessa ambição, se pensares como eles estão dominados pelo desejo de conquistar honrarias e glórias de eterna duração. É esse desejo mais ainda do que o amor aos filhos, que os faz, se isso for preciso, encarar todos os perigos, esbanjar fortunas, reagir contra todas as fadigas, sacrificar a vida."

Mas em quê devo colocar meu esforço de ser imortal?
É bom meditar sobre o que diz Salomão:

"Se o Senhor não construir a casa, em vão se esforçam os que trabalham na construção. Se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigiam os seguranças. É inútil levantar de madrugada ou dormir tarde da noite para aproveitar tudo aquilo que se possa consumir da vida. Aos que ele ama, Deus dá de tudo enquanto dormem"

O desafio é escolher a coisa/causa certa para buscar nossa imortalidade.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Eles querem ficar ricos




É incrível como grande parte dos norte-americanos nutre o sonho de, um dia, ser rico.
Andando por livrarias nos Estados Unidos, a gente fica impressionado com a quantidade de livros que ensinam fórmulas para alcançar a riqueza. Também é surpreendente o número de seminários e palestras que tratam do tema.

Em um país que construiu seu modelo econômico com a tese de que todos têm oportunidade de empreender, essa busca insandecida pelo dinheiro é compreensível. E, de fato, lá as oportunidades são muito maiores que aqui.

Como seria possível, então, constituir o mesmo discurso em países como o Brasil, nos quais o abismo que separa pobres, ricos e potenciais-ricos é tão grande?

Enquanto, nos Estados Unidos, a solução é correr para o mercado, aqui, o jeito é pegar com Deus. A Teologia da Prosperidade, vedete em templos evangélicos e católicos (de uma certa corrente), nada mais é que nossa versão do sonho da riqueza fácil. Quando a gente lê um panfleto de uma destas palestras de consultores americanos das quais falei, se sente diante de um convite para um culto cristão moderno. O objetivo é o mesmo, o discurso é o mesmo, o Deus é o mesmo, apenas as estratégias são diferentes.

Como diria Robinson Cavalcanti, falar de prosperidade e dinheiro na Califórnia é fácil... quero ver isso dar certo no sertão do Piauí.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O consumo norte-americano




Quando você viaja pelas principais companhias norte-americanas de aviação encontra na bolsa à frente dos assentos o catálogo de compras da Sky Mall. É incrível a capacidade que eles têm de consumir coisas que a gente nem imagina que alguém tivesse a capacidade de inventar.

Acima, apenas dois pequenos exemplos: uma rampinha para o seu cachorro entrar no carro e um jeito de curtir à vida em qualquer lugar (Imagino que haja lugares mais agradáveis).

Estou lembrando da definição que minha filha Júlia deu para Ciência (é a fala de uma criança de 7 anos): "ciência são as moléculas que se juntam para formar as coisas que precisamos e as que não precisamos também" (sic).

Acho que a Júlia descobriu quem inventa as coisas de que não precisamos.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Boston é BH?


Estou em Boston, cidade maravilhosa.
Poderia falar de suas belezas, mas o que me chamou a atenção foram as notícias de violência que circulam pela mídia local.
Na semana passada, duas pessoas foram assassinadas no mesmo bairro da periferia: um adolescente e um jovem de 28 anos que estava indo buscar os filhos na escola. Eram negros.
Ontem um homem matou a mulher e suicidou. Os filhos viram a cena.
No início deste mês, assaltaram a mão armada um banco que fica na região em que estou hospedado.
Claro que não estou querendo comparar a violência do Brasil com a de Boston. Aqui, a gente consegue andar nas ruas à noite com certa tranquilidade. E a polícia me parece menos corrupta.
Mas percebo uma cidade em que as desigualdades entre ricos e pobres crescem bastante. Aliás, este é um indicador que tem crescido em todo os Estados Unidos.
Acho que a sociedade americana está diante de um desafio novo: diminuir o muro que separa pobres e ricos.
Não sei como eles vão fazer isso.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O Reino de Deus


Lendo uma destas revistas de companhias aéreas, encontrei um artigo de João Sayad, ex-ministro do planejamento. No artigo, ele não falava sobre juros, PIB ou inflação, mas sobre outro tema: Felicidade (esse era o título do artigo). O que me chamou a atenção foi o trecho que reproduzo a seguir:

“A vida está organizada como um campeonato de futebol, onde todos desejam levar a Copa para casa. Desde os gregos, a civilização ocidental é competitiva. A metade cristã da civilização ocidental, o Sermão da Montanha (bem aventurados os humildes, pois deles é o reino dos céus), é assunto de domingo. Só os hippies estiveram interessados no reino dos céus. Caíram de moda. Invejamos e rivalizamos com o próximo. Pai, Abel, a mulher do pai, o país vizinho.”

A minha primeira reação foi de uma certa indignação. Como pode um economista se referir à proposta de solidariedade do Reino de Deus como algo fora de moda? Porque, em outras palavras, é isso que disse Sayad: na nossa sociedade competitiva, individualista e pós-moderna, na qual as pessoas querem apenas vencer umas às outras, não há espaço para a lógica do Reino.

Mas, será que ele não fez somente uma constatação da realidade?

Para nos deter apenas no exemplo citado pelo economista João Sayad, vejamos o que nos mostra o Sermão da Montanha:

- “Felizes os que choram...”: o Reino de Deus não oferece apenas a possibilidade das bênçãos em um modelo “self service”, no qual recolhemos aquilo que parece ser direito nosso. Para carregar a cruz de Cristo é preciso estar disposto a enfrentar as dificuldades que podem surgir no caminho.

- “Felizes as pessoas que têm misericórdia dos outros...”: ao contrário do conceito disseminado em nossa sociedade, no modelo de Jesus não há espaço somente para o que aprenderam mais, tiveram acesso às melhores escolas, nasceram em famílias da classe média e, por isso, são chamados de competentes. O Reino de Deus é espaço de solidariedade, onde fracos e fortes têm o mesmo valor.

- “Felizes as pessoas que trabalham pela paz...”: não dá para anunciar o Reino e defender o estado de guerra, no qual as pessoas fazem de tudo para ultrapassar o próximo, visto sempre como concorrente. Não dá para ser cristão sem promover a paz.

Acho que João Sayad está certo. O Reino de Deus está aprisionado nos cultos.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Um grito


("O grito", Munch)

Hoje eu vou gritar: NÃO GOSTO DOS HIPÓCRITAS.

Como defini-los? Jesus os chamava de "sepulcros caiados". Gente que sempre se apresenta com uma falsa beleza, mas tem o coração apodrecido.

Para gritar contra a hipocrisia, sugiro a canção do Cazuza. Tenhamos piedade dos hipócritas!


Get this widget | Track details | eSnips Social DNA


Blues da Piedade

Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas
Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não têm
Pra quem vê a luz
Mas não ilumina suas minicertezas
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua cheia
Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem
Quero cantar só para as pessoas fracas
Que estão no mundo e perderam a viagem
Quero cantar o blues
Com o pastor e o bumbo na praça
Vamos pedir piedade
Pois há um incêndio sob a chuva rala
Somos iguais em desgraça
Vamos cantar o blues da piedade
Vamos pedir piedade...

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Os sinais da Primavera


A primavera está começando e, quando o assunto são as estações do ano, a gente logo é levado a uma conclusão: está cada vez mais difícil enxergar de forma definida as características de um e outro tempo. O frio já não marca data para chegar, a chuva vai e vem sem que a gente possa estar preparado e nunca existe a certeza de quando começa o verão. Os mais velhos afirmam que nem sempre foi assim. Os meteorologistas concordam e chegam a dizer que o ser humano é responsável por tudo isso. Não conseguimos mais vivenciar as características particulares de cada estação do ano porque interferimos de forma irresponsável na natureza.

As reflexões deste despertar da primavera me fazem voltar para dentro de mim mesmo e perceber que nós também já não temos a clareza sobre as diversas estações pelas quais passamos em nossas vidas. Quando o autor de Eclesiastes diz que “há tempo para tudo” em nossa vida, ele tenta nos alertar para o fato de que devemos compreender cada momento e encarar de frente suas singularidades. Se há morte, ela deve ser uma possibilidade de renascimento; se há angústias, elas devem apontar para o futuro; se há dor, ela pode criar a expectativa da alegria.

Será que conseguimos perceber isso? Talvez a nossa vida esteja como as estações do ano. Não sabemos distinguir uma crise da outra, uma alegria da outra, uma dor da outra. Parafraseando os Titãs (para quem “miséria é miséria e riquezas são diferentes”), eu diria que a morte nunca é a mesma, os momentos de felicidade trazem sentimentos diferentes, as angústias apontam para caminhos sempre novos e os sofrimentos ou a esperanças também não são os mesmos.

Se o ser humano é o responsável pelo desequilíbrio da natureza, que desfez a lógica das estações, quem nos roubou a capacidade de compreender os ciclos da nossa vida? Desconfio de que ainda não nos demos conta da relevância desta questão. A sociedade está passando por uma transformação fundamental, que tem como uma das características básicas a perda de referenciais. Há um turbilhão de dúvidas e de possibilidades que nos leva para todos os lados, mas não constrói pontos de contato sobre os quais possamos apoiar. Pode não ser fácil entender este momento, mas cada um de nós deve saber que “há tempo pra tudo”.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

As buscas e as respostas II


Nunca confiei nos remédios. Talvez porque eu nunca tenha tido enxaqueca, precisando recorrer à Neosaldina, como muita gente que conheço.


O fato é que os remédios são coisas. Concretas. A gente toca.


Acho que algumas pessoas se sentem muito mais aliviadas quando podem perceber um ponto de contato com aquilo que vai curar do que quando existe algum efeito real a ser notado.


Talvez, por isso, haja clientes de garrafadas.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Da incoerência de nossas ações


Descobri este texto do Montaigne nesta semana. Achei bastante interessante. Compartilho da idéia de que é sempre necessário ter um projeto de vida, ainda que seja o projeto de não ter projeto.


Não é de espantar, diz um autor antigo, que o acaso tenha tanta força sobre nós, pois por causa dele é que existimos. Quem não orientou sua vida, de um modo geral, em um determinado sentido, não pode tampouco dirigir suas ações. Não tendo nunca uma linha de sentido, não lhe será possível coordenar e ligar uns aos outros os atos de sua existência. De que serve fazer provisões de tintas se não se sabe o que pintar?

Ninguém determina do princípio ao fim o caminho que pretende seguir na vida: só nos decidimos por trechos, na medida em que vamos avançando. O arqueiro precisa antes escolher o alvo; só então prepara o arco e a flecha e executa os movimentos necessários; nossas resoluções se perdem porque não temos um objetivo predeterminado. O vento nunca é favorável a quem não tem um ponto de chegada previsto (...)

Nossa maneira habitual de fazer as coisas está em seguir os nossos impulsos instintivos para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, segundo as circunstâncias. Só pensamos no que queremos no próprio instante em que o queremos, e mudamos de vontade como muda de cor o camaleão. O que nos propomos em dado momento, mudamos em seguida e voltamos atrás, e tudo não passa de oscilação e inconstância. (MONTAIGNE)

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

As buscas e as respostas


Penso que o mundo sempre foi assim. A necessidade de encontrar sentidos para as questões particulares da vida faz com que as pessoas recorram a toda sorte de caminhos. Basta isso para que outros ofertem possibilidades de respostas.


Quando eu vejo cartazes como o do "Profeta Luis Claudio" não fico indignado ou revoltado. Apenas paro e reflito sobre a condição humana.


Somos frágeis e queremos alguma certeza que não se desmanche no ar.


Para provar que este "Armazém da Fé" não é coisa apenas de pastores, profetas, padres ou apóstolos, irei postar outras fotos em breve.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

A flor e a náusea


Por sugestão de meu amigo Eduardo Nunes, uma poesia de Drummond para embalar nossos dias lúgubres.


Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. (...)

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas.

Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.

Por fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto

Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia.

Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia.

Mas é uma flor.

Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Julgamento no Congresso


Livre interpretação do Livro do Profeta Amós (Cap. 2: 6-16)


Assim diz o Senhor: por três crimes no Senado e pelo quarto, eu não vou perdoar. Vocês compram a consciência dos justos por dinheiro e trocam votos por um par de sandálias; pisam os mais fracos e se desviam do caminho dos pobres. Em todos os altares de Brasília, se deitam sobre as dívidas do povo e, nos Palácios do poder, festejam à custa do fardo que impõem à Nação.

Vocês embriagaram os colegas de bancada que ainda queriam acreditar na ética e taparam a boca de quem gostaria de gritar contra a corrupção. Pois eu vou abrir o chão debaixo de vocês, como se uma carreta carregada de gado estivesse atravessando a Esplanada. O mais veloz não vai conseguir fugir. A valentia de alguns não vai adiantar de nada. Nem o que se acha muito forte vai escapar. Neste dia, o mais corajoso vai tentar fugir.

Oráculo do Senhor!

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Amazônia, uma região de poucos

Este é um vídeo produzido pelo Greenpeace. Vale a pena assistir.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Sentimento do mundo


Um Drummond pra refletir nesta segunda:


Sentimento do mundo


Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem

e o corpo transige

na confluência do amor.


Quando me levantar, o céu

estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.


Os camaradas não disseram

que havia uma guerra

e era necessário

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.


Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordação

do sineiro, da viúva e do microscopista

que habitavam a barraca

e não foram encontrados

ao amanhecer


esse amanhecer

mais noite que a noite.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Lá estão elas


Quem tirou esta foto foi minha amiga Martha, que estava em viagem missionária. O local é Caminhos de Ferro-Tête-Beira, em Moçambique. Não preciso nem chamar a atenção para a garrafa de coca-cola no braço da menina...


As marcas globais estão em lugares nos quais não conseguimos chegar sequer com nossos pensamentos.


Coca, Mc Donalds, IBM, Microsoft... quem poderá construir pontes que atravessem o fosso existente entre ricos e pobres? Tenho certeza que não serão eles.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Sobre os fatos e os argumentos


Estava escrito em um display no banheiro do hotel:

“Pendure suas toalhas que não necessitem ser trocadas. Estimativa da Unesco destaca que, até 2050, três bilhões de pessoas em 48 países enfrentarão problemas de escassez de água. Participe”. Já vi algo parecido em vários hotéis.

Vou testar hipóteses (expressão que Luis Nassif usa para descrever a prática contemporânea do jornalismo, que cria os fatos antes de apurá-los):

Hipótese 1: repentinamente, os donos de hotéis foram tomados por um surto civilizatório e resolveram ajudar a proteger os recursos do Planeta.

Hipótese 2: os hotéis querem economizar água (e dinheiro) e, para isso, estão recorrendo ao mote ambientalista do momento, como se os hóspedes não percebessem nada.

Quantas vezes na vida usamos falsos argumentos para defender nossas posições ou nos apresentar diante dos fatos e das pessoas? Será que conseguimos enganar a nós mesmos?

Codinome Beija-Flor

Que coincidência é o amor. A nossa música nunca mais tocou.

domingo, 26 de agosto de 2007

Maiakovski

Houve um tempo em que sonhei em ser um poeta como Maiakovski. Não tinha talento. Este é o meu poema predileto deste russo:

LÍLITCHKA!
Em lugar de uma carta

Fumo de tabaco rói o ar.
O quarto -
um capítulo de inferno krutchônikh.
Recorda -
Atrás desta janela
pela primeira vez
apertei tuas mãos, atônito.
Hoje te sentas,
no coração - aço.
Um dia mais
e me expulsarás,
talvez, com zanga.
No teu "hall" escuro longamente o braço,
trêmulo, se recusa a entrar na manga.
Sairei correndo ,
lançarei meu corpo à rua.
Transtornado,
tornado
louco pelo desespero.
Não o consintas,
meu amor,
meu bem,
digamos até logo agora.
De qualquer forma
o meu amor-
duro fardo por certo -
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.
Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.
Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
ele
trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos - rodopiante carnaval -
dispersarão as folhas dos meus livros...
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?
Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa. (Maiakovski)

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Os nomes


Na madrugada desta quinta, 23, 25 presos morreram queimados em uma cela da cadeia pública de Ponte Nova, interior de Minas, depois de uma briga entre gangues rivais. Até o final da tarde não haviam sido divulgados os nomes das vítimas. Não houve clamor da opinião pública por esta omissão, como acontecera no caso do acidente com o avião da TAM, há pouco mais de um mês (Nem a turma do movimento Cansei apareceu).

Gosto de refletir sobre a nossa relação com os nomes. Me lembro que na minha cidade natal, Alvarenga, os homens eram reconhecidos pelos nomes das esposas. Meu primo era o Zé da Gracinha. Acho que as mulheres professoras, como a Gracinha, tinham mais valor naquela sociedade em que faltavam ofícios mais relevantes para os homens.

Atrás dos nomes se escondem as imagens e os atributos das pessoas.

Quem nunca emprestou um codinome à pessoa amada? “Amor”, “bem”, “anjo” – são alguns dos tratamentos preferidos por quem ama com paixão. Se eu pronuncio o nome, ou o codinome, trago a pessoa para perto de mim.

Quando a gente não dá valor aos nomes e transforma os sujeitos em estatísticas (feito os presos queimados vivos), diz, ainda que inconscientemente: “esta pessoa não tem parte conosco, não tem direito a um nome que a traga para junto de nós”.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Ainda o Código de Conversão das Igrejas

Para debater o Código de Conduta das Igrejas, segue um comentário de Eduardo Nunes:
É da natureza das instituições o controle. É ainda da natureza das instuições a criação de espaços onde este controle possa ser melhor exercido. A novidade é que em uma sociedade que cria espaços fluidos como a nossa, esta natureza das institituições passa a trazer um quê de ridículo pq os espaços que elas pretendem controlar não parecem corresponder à realidade, fluida. Mas não desprezemos a capacidade de sucesso destas fórmulas institucionais, ainda que ridículas. Elas parecem atender a um ambiente de faz-de-conta que as instituições (seja o Estado, Igrejas, ONGs, etc) criam para exercer seu controle. Mas, tornam-se reais de justificam discussões, pautas e catalizam estas instituições em tonro de temas. Enfim, mesmo sendo um faz-de-conta resultam em algo concreto, que é o exercício do poder.

Pouco é necessário


Assisti à Bloomberg ontem e fiquei pensando que gostamos mesmo de nos afogar em informações.

A explosão informacional é um dos fenômenos que molda nossa sociedade contemporânea. Somos bombardeados por informações que chegam de todos os lados e, muitas vezes, cremos que estamos conhecendo mais. Excesso de informação não significa, necessariamente, mais conhecimento.

Houve um tempo em que me percebi viciado pela na rede de televisão Bloomberg. Pensava comigo: como é bom ver tantas notícias ao mesmo tempo. Quem conhece a Bloomberg sabe do que estou falando. A emissora inunda a tela da sua televisão com informações de economia. Enquanto o apresentador conduz uma entrevista no canto superior esquerdo do vídeo, surgem do lado oposto as cotações momentâneas das principais moedas do mundo. Abaixo, a tela se divide em mais quatro ou cinco espaços nos quais são exibidas outras informações: indicadores das bolsas de valores, desempenho das ações, balanço das grandes empresas, cotações de comodities, etc. É impossível ler tudo ao mesmo tempo.

A reprodução excessiva de informações pode contribuir para a desinformação, na medida em que nos falta espaço para a construção de sentidos sobre as coisas.

Para empreender um bom projeto de vida, creio que precisamos encontrar um caminho simples neste labirinto da modernidade, que nos apresenta saídas a todo instante. Como diria Jesus, “pouco é necessário, ou mesmo uma só coisa”.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

FREJAT - Amor Pra Recomeçar

Como sugestão do Sandro para o post Compartilhando a Vida, segue uma canção do Frejat:

AMOR PRA RECOMEÇAR

Eu te desejo não parar tão cedo
pois toda idade tem prazer e medo
e com os que erram feio e bastante
que você consiga ser tolerante
Quando você ficar triste
que seja por um dia e não o ano inteiro
e que você descubra que rir é bom
mas que rir de tudo é desespero
Desejo que você tenha a quem amar
e quando estiver bem cansado
ainda exista amor pra recomeçar,pra recomeçar
Eu te desejo muitos amigos
mas que em um você possa confiar
e que tenha até inimigos
pra você não deixar de duvidar
Quando você ficar triste
que seja por um dia e não o ano inteiro
e que você descubra que rir é bom
mas que rir de tudo é desespero
Desejo que você tenha a quem amar...
Desejo que você ganhe dinheiro
pois é preciso viver também
e que você diga a ele pelo menos uma vez
quem é mesmo o dono de quem
Desejo que você tenha a quem amar...

Código de Defesa dos Interesses Eclesiásticos


Foi matéria de meia página no Estadão: o Vaticano, a Aliança Evangélica Mundial e o Conselho Mundial de Igrejas se uniram para discutir um código de conduta que regulamente o assédio aos fiéis pelas diferentes religiões.

Para responder à perversa realidade que enxerga a fé como mercado, as igrejas decidem se controlar, tratando os fiéis como produtos. Não há a menor diferença entre o salve-se quem puder de hoje e as fronteiras que este código pode vir a impor. No fundo, no fundo, as igrejas continuam imaginando que podem ser guardiãs do Espírito Santo, aquele que Jesus Cristo definiu como um “vento que sopra onde quer”.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Compartilhando a vida


“Nada é realmente seu quando você não pode dividir com as outras pessoas”.

Li a frase em uma destas revistas de companhias aéreas. Parece um bordão de almanaque, mas dizem que é um ditado muito popular na Hungria. Não importa a origem. A afirmativa pode significar bastante.

Quando parei para pensar no conteúdo que estava posto ali me veio logo à mente o encontro de Jesus com um jovem rico, narrado nos Evangelhos. Confrontado com a proposta de Jesus (dividir tudo o que tinha com os pobres), ele fez silêncio e prosseguiu no seu caminho. A verdade é que o dinheiro do qual o jovem tinha posse não lhe pertencia. E por que não? Porque era um dinheiro que o aprisionava ao egoísmo, ao individualismo, à opressão dos mais pobres, à vaidade. Estes valores eram os verdadeiros donos do dinheiro que haviam emprestado ao jovem. Ele realmente não poderia dividi-lo com os pobres.

Se não temos uma atitude de despojamento em relação aos nossos bens, não podemos dizer que eles nos pertencem. O mesmo vale para os sentimentos que pensamos ter desenvolvido em nós. Quem não pode perdoar o outro, nunca desenvolveu em si o perdão; quem não demonstra carinho para com os filhos, não conhece a ternura; quem não pode chorar com aquele que sofre, não sabe o que é a solidariedade.

É bem verdade que nós confeccionamos cortinas para nos impedir de perceber os sentimentos que não estão desenvolvidos em nós. Por esta lógica, tentamos reafirmar que o outro não merece receber o que nos é mais precioso. Se não estamos dispostos a dividir os sentimentos é porque ainda não os temos.

sábado, 18 de agosto de 2007

A prisão dos bispos

Estevam e Sônia Hernadez, bispos da Igreja Renascer em Cristo, foram condenados ontem nos Estados Unidos a 5 meses de prisão. Eles foram acusados de conspiração por terem entrado com uma mala cheia de dólares em Miami, sem declarar o dinheiro que levavam.

Depois de algum tempo em silêncio, eles assumiram o crime, mas deram uma justificativa. Estevam e Sônia disseram que haviam decidido fixar residência em Miami porque estavam com medo de sequestros no Brasil. Eles explicaram que não declararam os dólares ao chegar nos Estados Unidos para evitar que fossem assaltados no aeroporto.

Só uma pergunta: se estavam fugindo da violência do Brasil, porque os bispos decidiram se mudar para um país no qual tinham medo de ser assaltados no aeroporto?

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

O Deus mercado

Uma coincidência. Na semana em que a imprensa se delicia com mais uma crise global do sistema financeiro, chega aos cinemas o documentário sobre o geógrafo Mílton Santos. Autor do livro Por uma outra globalização, Santos é um dos mais ácidos críticos da nova ordem mundial, que aprofunda o poço entre excluídos e incluídos.

O documentário mostra o professor pronunciando uma de suas célebres frases: “O consumo é o novo fundamentalismo”. Permitam-me a pretensão, mas assino embaixo.

A preocupação dos analistas que discutem a quebradeira nas bolsas é de que diminua o consumo nos Estados Unidos. Se os americanos gastarem 1% menos em compras, deixarão de injetar um trilhão de dólares na economia. Os alarmistas vaticinam o fim do mundo se isso acontecer. Temos informações suficientes para fazer o raciocínio inverso. Se todos nós (o andar de baixo do mundo) realizarmos o sonho pequeno burguês de consumir como os americanos, o planeta não vai resistir. Também será o fim do mundo.

Não creio que a luta contra o fundamentalismo do consumo deva ser bandeira apenas dos militantes anti-globalização. Aqueles que têm fé, aqueles que sonham, nas igrejas ou nas praças, deveriam saber que não há um mundo possível enquanto o consumo for a nossa religião.

A gente começa desejando vinhos, carros, viagens à Disney, e não consegue mais deixar de consumir estilos de vida, comportamentos, sentidos para a existência, padrões de relacionamento. Está tudo disponível como numa prateleira de supermercado. Descartável, é lógico.

Felicidade sem falta

O que é a felicidade? Não creio que seja um estado perfeito de prazer, mas um jeito sereno de atravessar a vida, no qual podemos encarar plenamente tudo o que vivemos, sejam tragédias ou glórias.

André Comte-Sponville, filósofo do nosso tempo, entende que a idéia da felicidade como o encontro daquilo que sacia a minha sede de prazer pode ser equivocada se o prazer for satisfeito apenas pelo que me falta. É o que dizia Platão: “o que não temos, o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor”. Se for assim, sempre que obtivermos o que desejamos, sentiremos falta novamente.

Nas palavras do Eclesiastes: “Amontoei também para mim prata e ouro, e tesouros de reis e de províncias; provi-me de cantores e cantoras, e das delícias dos filhos dos homens: mulheres e mulheres. E eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento”.

É neste contexto que Sponville propõe uma nova relação com os prazeres da vida: “há prazer, há alegria, quando desejamos o que temos, o que fazemos, o que é. Há prazer, há alegria quando desejamos o que não falta!” Até quando você conseguirá ter prazer caminhando por um parque com seu amado ou sua amada? Você pode ter prazer contemplando o pôr-do-sol numa casinha branca de varanda? A isso, o filósofo chama de “felicidade em ato”, ou a substituição do desejo que nasce apenas da falta pelo desejo que é potência (na definição de Spinoza): não é a falta que nos faz querer a coisa ou a pessoa, mas sim a possibilidade de gozar plenamente o prazer daquilo que já temos.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Improbalidade estatística

Veio do meu amigo Eduardo Nunes, sociólogo, por certo, a idéia de que somos, todos nós, improbabilidades estatísticas. A chance de que existíssemos era quase a igual a zero. Pare pra pensar:

Quais foram as condições necessárias para que seus avós se conhecessem? Que situações inusitadas aproximaram seus pais? (Os meus se encontraram porque meu avô paterno, próspero cafeicultor da zona da mata mineira, perdeu tudo o que tinha durante a quebradeira da Bolsa em 1929 e decidiu se transferir para Alvarenga, uma cidadezinha a mais de 400 km de distância, da qual mal havia ouvido falar).

Estabelecidos todos os encontros, cada indivíduo é o que é apenas porque, dentre milhões de espermatozóides, exatamente aquele se juntou ao óvulo.

Se é, no mínimo, jocoso, o raciocínio nos leva a crer que somos totalmente originais. Não há nada como você por aí. Quem poderia, então, amá-lo mais do que você mesmo?

A singularidade quase absurda que a natureza nos reserva me faz pensar que amar a mim mesmo não é ter orgulho exacerbado das minhas virtudes ou piedade disfarçada pelos meus defeitos. Amar a mim mesmo é ter uma boa consciência do que sou, a exata medida das minhas possibilidades. Afinal, como fruto de uma improbabilidade estatística, somente eu posso me medir com a exata medida.

Chega de saudade?

“Toda saudade é uma espécie de velhice” – eu fui dormir com esta frase do Riobaldo. Certo tipo de saudade é mesmo uma espécie de querer ter ou querer ser. Quando a gente sabe o que falta fica angustiado por aquele desejo de possuir e acaba envelhecendo no lugar onde mora a ausência.

Mas, e quando bate aquela “saudade de tudo o que eu ainda não vi”, descrita pelo Renato Russo? Será que esse é outro tipo de tristeza, daquela que os poetas precisam para criar? O Vinícius dizia que “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”.

Não creio que seja possível sobreviver sem experimentar esse querer indescritível, ou a tal “nostalgia indefinível” do Rubem Alves. O reverso da saudade que não tem nome é o instante de plenitude, que, por vezes, toma conta da gente. Sabe aquela sensação, também indefinível, de que temos o controle de tudo? A esta felicidade, irritante, visto que é fugaz, Santo Agostinho chama de “alegria que provém da verdade”.

Não há outra resposta: sofremos a angústia de quem espera conhecer a verdade. É o que diz o poema de Paulo:

Porque agora vemos como em espelho, obscuramente;então, veremos face a face. Agora, conheço em parte; então conhecerei como também sou conhecido.